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31.1.10

Beshalach



“Bendito sejas Tu, Eterno nosso Deus, que preserva o chão sobre as águas.” Em nosso sidur esta é uma das bênçãos do alvorecer.

Ter um chão firme onde colocar os pés parece algo simples. E, no entanto, vivemos hoje um tempo em que terras firmes não são algo tão óbvio assim. Em São Paulo as chuvas têm transformado a vida na cidade em um caos e muitas vezes em tragédia. Em Israel, as intensas chuvas deste ano, que não deixam de ser uma bênção, têm gerado também diversos transtornos. Já no Haiti, como todos temos infelizmente acompanhado, a terra tremeu sob os pés de seus habitantes e levou muitas vidas embora.
Os rabinos do Talmud sempre enfatizam que jamais devemos nos esquecer do dia em que saímos do Egito. Ao mesmo tempo em que este foi para nosso povo um cativeiro, quando houve a chance de sair teve quem decidiu ficar, porque pelo menos a terra era firme, havia comida e um teto sob o qual dormir. A opção da liberdade proposta por Deus através de Moisés era tanto motivo de alegria e alívio, quanto de incerteza e medo. Não havia nenhuma garantia que, ao se deixar o Egito, se chegaria a algum lugar melhor.
“E vieram os filhos de Israel para dentro do mar, em terra seca. E as águas estavam para eles como muralhas à direita e à esquerda.” (Êxodo 14:22) Sempre que lemos esta fantástica travessia, vemos a imagem cinematográfica da multidão atravessando duas muralhas de mar. Como deve ter sido esta travessia aos olhos de cada pessoa? E aos olhos de uma criança? Rabi Nehorai nos conta (em Midrash Raba, Beshalach) que quando o povo de Israel entrou no Mar Vermelho, entre eles havia uma mulher que levava seu filho pela mão, e ele chorava muito. Imagino esta criança puxada por sua mãe, chorando, atordoada entre a multidão de gente, carroças e animais, enquanto muralhas de água rugiam ameaçadoras como se pudessem desabar sobre todos a qualquer minuto. Neste momento a mulher estendeu a mão, pegou uma maçã, lavou-a nas águas do mar e a deu ao filho.
Recordo-me de uma história que me foi contada por um sobrevivente da Shoá. Aproximava-se o final da Segunda Guerra Mundial. Ariê estava em um campo de concentração. Ele e um companheiro carregavam um panelão de sopa para os internos quando a força aérea americana sobrevoou o campo e passou a bombardeá-lo. Em meio à chuva de bombas, seu amigo, assustado, correu para o galpão e escondeu-se sob a mesa da cozinha. Ariê decidiu agir diferente: sentou-se e começou a comer a sopa do panelão. “Naquele momento eu estava morrendo de medo, mas também de fome. Então pensei: Se morrer, pelo menos que seja de barriga cheia”, comentou comigo. Ariê não só sobreviveu, como logo depois deixou o campo com os demais sobreviventes, participou da chamada Marcha da Morte e enfrentou inúmeras outras situações de perigo. Alguns anos depois chegou ao Brasil, reconstruiu sua vida e contou sua história.
As manchetes dos jornais nos contam que foram encerrados os serviços de resgate após o terrível terremoto no Haiti, e que aos poucos seus habitantes reconstroem suas vidas. Em meio à destruição e às ameaças de novos tremores de terra, as equipes de auxílio de Israel se destacaram pelo modo como salvaram pessoas dos escombros, por seus sofisticados hospitais de campanha e pelo calor humano, relatado tanto por haitianos quanto pelas equipes dos demais países. Eles não eram capazes de conter as forças da natureza como Deus um dia conteve as águas do Mar Vermelho, mas os israelenses estenderam a mão aos haitianos com o mesmo carinho e presença que aquela mãe estendeu uma maçã ao filho. Eles ajudaram a cada haitiano que puderam, cumprindo à risca o que nos ensinaram os rabinos do Talmud: “Quem salva uma vida é como se salvasse o mundo inteiro”.
Centenas de milhares de israelitas pereceram no deserto, na longa caminhada após a travessia do Mar Vermelho. Milhões de judeus foram assassinados na Shoá. Mais de cem mil haitianos morreram vítimas do terremoto que sacudiu seu país. Mas em todos estes casos a solidariedade e a força do indivíduo não pereceram. Estender a maçã, oferecer tratamento aos feridos e encarar o perigo com coragem são mais do que bênçãos; significa cumprir a mitsvá que nos foi ordenada por Deus: Escolher pela vida, pela vida de cada indivíduo e pela própria vida.


Shabat shalom e Tu b’Shevat Sameach
Uri Lam, de Jerusalém

(Fonte: Site da Congregação Israelita Paulista - CIP.org.br)

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