Jornalista Alberto Dines
EUGÊNIO BUCCI - O Estado de S.Paulo
"Dizer que jornal é trabalho de equipe é 
dizer muito pouco. Jornal bem-sucedido é trabalho de uma orquestra de 
personalidades e ideias diferentes ou mesmo antagônicas, porém 
complementares, harmonizadas e equilibradas por normas ou metas comuns"  (Alberto Dines, em 'O Papel do Jornal')
Na profissão de jornalista, em que os 
princípios pessoais parecem não resistir aos dez primeiros anos de 
carreira, o nome de Alberto Dines reluz como um patrimônio inspirador. 
No dia 19 de fevereiro, domingo passado, ele completou 80 anos de idade.
 Também neste ano de 2012 ele comemora seis décadas de profissão: uma 
trajetória brilhante, acidentada, por certo, e modelar. Olhando para 
ele, hoje, a gente compreende o que significa ser jornalista - e gosta 
do que compreende.
Como todos nós, Dines cometeu erros. Ele 
mesmo reconhece. Durante o almoço, volta os olhos para cima, a cabeça 
indo de um lado para outro, num balanço leve, e conta dos tropeços, das 
vezes em que deu vazão à aresta mais cruel das palavras com o propósito 
de ferir, mais do que de informar. Acontece. Deixemos isso de lado. No 
legado que de fato importa, sua biografia é fonte de ensinamento: uma 
lição de trabalho intenso e extenso, com produção incessante, diária, e 
uma obra que vai da crítica cinematográfica a livros de pesquisa 
histórica, passando pela reportagem cotidiana, pela crítica de imprensa e
 pelos artigos de opinião. Dines é a prova de que a experiência não 
concorre necessariamente para diluir os princípios e de que o caráter 
não esmorece. No caso do jornalista, o caráter alimenta-se da 
independência intelectual e material, assim como se alicerça no cultivo 
da liberdade e do espírito crítico - portanto, ganha vigor com o passar 
do tempo.
Assim como os escritores realmente 
grandes são aqueles que ensinam a seus pares a arte da narrativa, o 
jornalista maior tem a capacidade de despertar vocações nos mais jovens.
 Dines também desperta vocações. Embora seja difícil afirmar que esta ou
 aquela vocação tenha nascido por influência deste ou daquele 
profissional, há pelo menos uma, nem que seja uma só, que deve ser 
creditada a ele. A coluna Jornal dos jornais, que Dines assinou na Folha
 de S.Paulo entre 1975 e 1977, motivou um adolescente, então estudante 
numa cidade da região da Alta Mogiana, no interior paulista, a firmar a 
decisão de trabalhar na imprensa e, pelo menos até o instante em que 
assinou este artigo - este aqui, que você lê agora -, aquele adolescente
 dos anos 70 não se tinha arrependido da escolha que fez.
Na velha coluna de Alberto Dines, que 
ajudou a firmar a crítica de mídia no Brasil, o adolescente da Alta 
Mogiana começou a se dar conta de que escrever na imprensa também era 
uma forma de pensar sobre a imprensa, e ele começou a achar aquele 
negócio interessante.
As mais belas reportagens renovam o lugar
 do discurso jornalístico dentro da cultura. É verdade que podemos dizer
 algo parecido sobre quase tudo, sobre a poesia, a arquitetura, o cinema
 e também sobre a medicina e até mesmo a engenharia: o engenho humano, 
onde quer que ele se manifeste, na arte ou na ciência, na técnica, na 
política ou na religião, tende a redefinir a si mesmo - o que, no fim 
das contas, é uma constatação um tanto óbvia, quase banal. Não teria por
 que ser diferente com o jornalismo - e, no entanto, é diferente. 
Sutilmente, mas é.
Na 
nossa profissão, que navega nas franjas do que é notícia, daquilo que é 
verdade hoje, mas não era verdade até ontem, os imperativos da 
velocidade, da aceleração e da mudança pesam muito mais. Mais que outras
 atividades, o jornalismo depende de saber se redefinir a cada dia. Ao 
registrar a História no calor da hora, a sangue-frio, o jornalista é 
agente da História, um catalisador do fato histórico em alta velocidade,
 o que faz dele um profissional das ideologias, mesmo quando guarda em 
si a convicção ideológica de que nada tem de ideológico. Se ele não 
desenvolve consciência sobre o que faz, corre o risco nada desprezível 
de estar a serviço de ideologias que não vê enquanto empina o nariz 
imaginando desconstruir as que vê. Se não acumula reflexão, dificilmente
 fará algo de útil ou de valioso.
Comparemos o jornalista com o cirurgião. 
Este, o cirurgião, pode muito bem se revelar um gênio do bisturi sem 
nunca ter dedicado um segundo sequer ao exame intelectual das relações 
entre seus atos e o sentido geral da civilização, ou sobre o emaranhado 
de sentidos que tece a fronteira instável entre saúde e doença. Para o 
jornalista, o mesmo grau de alienação constituiria falta grave. Se 
obstinadamente técnico, perde de vista o que há de controverso na cena 
humana, da qual lhe cabe fazer a crônica.
A imprensa ocupa-se mais das incertezas 
que das certezas. Sem método, sem critérios e sem pensamento 
(epistemológico) ela se perderia. A sua dupla condição - ter de fazer e 
ter de refletir - não é dúplice nem ambígua, mas íntegra. Aí se inscreve
 o significado mais fecundo da longa trajetória de Alberto Dines. Como 
professor universitário - que não tem diploma de nenhuma faculdade -, 
ele ajudou a lançar no Brasil, quando começou a dar aulas na PUC-Rio, 
ainda nos anos 60, as bases da disciplina Jornalismo Comparado. Como 
jornalista, no comando do Jornal do Brasil, ou na direção de revistas da
 Editora Abril em Portugal, ou ainda como fundador do Observatório da 
Imprensa, um marco pioneiro do jornalismo online no Brasil, criado há 15
 anos, ensinou a credibilidade da imprensa laica, apartidária e plural.
Onde o mundo é uma gritaria, uma babel 
caótica, o grande editor identifica a orquestra passível de afinação. 
Também por isso a imprensa encarna com tanta intensidade o sonho 
democrático. Movido por esse sonho, o jornalista faz, pensa e depura o 
caráter. Não pode haver profissão melhor.
Eugênio Bucci é jornalista e Professor-Mestre na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, e da Escola Superior de Propaganda e Marketing, da mesma cidade.

 
 
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