"Os árabes nunca perdem a oportunidade
de perder uma oportunidade", dizia Abba Eban, chanceler de Israel nos
anos 1960 e 1970. Com o tempo, quem usa a frase foi trocando "árabes"
por "palestinos". Porque o "conflito árabe-israelense" tornou-se a
"questão palestina".
A tirada de Eban sobreviveu à sua
morte, em 2002, por uma razão objetiva: a ampla maioria dos líderes
árabes e muçulmanos tem recusado, nos últimos quase cem anos, qualquer
solução de compromisso que inclua um Estado judeu, de qualquer tamanho
ou desenho, em qualquer parte do antigo mandato britânico na região.
Do relatório da Comissão Peel (1937) às
ofertas de Ehud Barak (2000) e Ehud Olmert (2008), passando pela
partilha decidida pela ONU em 1947, a cada rejeição árabe-palestina
costuma seguir-se um conflito, e dele resulta um status quo pior para os
rejeicionistas, geralmente consequência de derrotas no campo de
batalha.
Não se discute aqui a legitimidade dos
objetivos de cada litigante, mas resultados concretos de escolhas
políticas. E escolhas ruins costumam partir de premissas erradas.
A mitologia árabe-palestina sobre
Israel e o sionismo é útil para produzir fanáticos. Serve também para
oferecer um horizonte anticapitalista (regressista) a grupos que, com o
fim do campo soviético, perderam as referências anticapitalistas
progressistas. Ajuda ainda a fantasiar de "anti-imperialismo" o velho
antissemitismo. Mas adiciona pouco ao sucesso da emancipação palestina.
Também por basear-se em premissas equivocadas.
A primeira premissa errada é considerar
Israel um enclave imperialista, um empreendimento colonial. Ora, o
moderno projeto sionista nasceu no século 19, mas consolidou-se nos anos
30 e 40 do século passado contra o desejo da potência colonial de
ocupação, o Império Britânico. Basta consultar, por exemplo, sobre o
infame "Livro Branco de 1939".
Nele, à beira da Segunda Guerra Mundial
e com as leis racistas da Alemanha de Hitler já em vigor, o governo
britânico comandado pelo notório Neville Chamberlain rejeitava a
partilha da Palestina e a criação de um Estado judeu, limitava a
imigração judaica a 75 mil pessoas nos cinco anos seguintes (que viriam a
coincidir com o Holocausto) e restringia o direito de os judeus
comprarem terras dos árabes, entre outras cláusulas.
Os propagandistas da tese "colonial"
precisariam explicar por que, em plena descolonização do pós-Guerra, a
União Soviética de Josef Stálin votou na ONU em 1947 a favor da criação
do Estado judeu, enquanto o maior colonizador da época, o Reino Unido,
abstinha-se, para não desagradar aos sócios árabes. E a URSS foi o
primeiro país a estabelecer relações diplomáticas oficiais com Israel.
Israel é produto da luta de
independência da nação judaica, a partir da criação do moderno movimento
sionista, desencadeado no final do século 19 pela agudização das
perseguições antissemitas na Europa e pela frustração com o produto das
revoluções burguesas.
Um ramo judaico abraçou o sionismo,
inclusive o socialista. Outro aderiu ao marxismo, na esperança de a
revolução proletária garantir aos judeus a igualdade prometida, mas
nunca realizada. Um terceiro escolheu a assimilação. Um quarto, a
ortodoxia religiosa.
Naturalmente, sionistas e Israel
procuraram, ao longo dos anos, aproveitar as contradições entre as
potências para ganhar aliados.
Não há originalidade nisso. Lênin
entendeu-se com os alemães para voltar à Rússia e fazer sua revolução,
que incluía tirar os russos da Primeira Guerra, algo de grande interesse
para o inimigo alemão. Os Estados Unidos obtiveram apoio da França na
guerra pela independência contra o Império Britânico. O Brasil recebeu
ajuda da Inglaterra para livrar-se da dominação colonial portuguesa.
Fazer as alianças certas é chave em
processos de emancipação nacional. Infelizmente para o movimento
árabe-palestino, seus principais líderes decidiram aliar-se à Alemanha
nazista na Segunda Guerra. Depois alinharam-se à União Soviética na
Guerra Fria.
Enquanto isso, os judeus sionistas
lutaram ao lado dos vencedores nas duas grandes guerras do século
passado e –também com uma dose de ventura– acabaram empurrados para uma
aliança com os Estados Unidos contra a União Soviética, que dera as
costas aos sionistas-socialistas e se vinculara às revoluções
antimonárquicas e nacionalistas no mundo árabe nos anos 50 e 60.
Sobre alinhamentos, aliás, registre-se
que vão de vento em popa as relações de Israel com os países mais
dinâmicos dos Brics, como a Índia e a China.
A segunda premissa errada é a de que a
vantagem aritmética árabe-muçulmana em território, população e forças
convencionais será, um dia, suficiente para remover Israel do mapa. De
acordo com essa tese, Israel seria um fenômeno passageiro, como a
presença dos cruzados na Terra Santa.
Além de ignorar a relação milenar dos
judeus com a região, a premissa tem sido negada pelos fatos. A "unidade
antissionista árabe-muçulmana" é só um slogan, apenas ficção.
Egito e Jordânia já assinaram e
praticam acordos de paz com Israel. A Turquia era um grande parceiro de
Israel até a ascensão dos islâmicos ao poder. A relação piorou, e agora
volta a melhorar. "Israel precisa da Turquia, mas a Turquia também
precisa de Israel", disse dias atrás o presidente turco, Recep Tayyip
Erdogan.
No fim de 2015 anunciou-se a abertura
da representação israelense em uma agência internacional de energia
renovável em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. Os países do Golfo, assim
como a Turquia, não estão confortáveis com as ambições do Irã. Os fatos
recentes comprovam.
Os árabes enfrentam hoje duas grandes
ameaças imediatas: o fundamentalismo sunita (Al Qaeda, Estado Islâmico) e
o expansionismo persa-xiita (Irã). Não há unidade nem entre os
palestinos, divididos ideológica, política e territorialmente entre os
nacionalistas do Fatah e os islâmicos do Hamas.
Israel não se considera inimigo de seus
vizinhos também por não ter disputas territoriais com o Egito, a
Jordânia e o Líbano. Sobre a Síria, a ocupação e posterior anexação das
colinas de Golã foram resultado de conflitos motivados principalmente
por razões de segurança.
O terceiro erro é fazer o paralelo
entre Israel e a África do Sul do apartheid. No apartheid, a segregação
social da maioria negra assentava-se na segregação política. A bandeira
fundadora da luta contra o apartheid era o "um homem, um voto", o voto
igual de brancos e negros. Nelson Mandela foi um líder político, não um
ativista social.
Em Israel, os árabes israelenses não
apenas votam mas são votados, constituem partidos e influem no poder. A
principal coalizão árabe é a terceira maior bancada no atual Knesset
(Parlamento). Uma deputada árabe preside o Comitê Parlamentar sobre o
Status das Mulheres e a Igualdade de Gênero.
A minoria árabe não influi mais porque a
maioria de seus representantes não admite participar de coalizões de
governo com partidos sionistas. Depois da última eleição, recusaram
unir-se ao campo trabalhista e social-democrata contra o campo
nacionalista-religioso e de direita liderado por Benjamin Netanyahu.
Apartheid político e discriminação é o que se vê em países vizinhos, ou próximos.
A guerra civil na Síria, como a do
Iraque, nasceu da rebelião dos sunitas contra o monopólio político dos
xiitas. No Egito, um partido islâmico foi tirado do poder pelos
militares, colocado na ilegalidade, e seus líderes estão presos, alguns
condenados à morte.
No Iêmen e no Bahrein são os xiitas a rebelar-se
contra os sunitas.
Que "apartheid"? Arábia Saudita e Irã,
entre outros, são Estados formalmente islâmicos. É sintomático que a
República Islâmica do Irã seja universalmente aceita, enquanto Israel se
declarar um Estado judeu é apontado pelos críticos como prova de
discriminação em relação às demais religiões.
É o velho antissemitismo, de roupa
nova: nega-se aos judeus o que se aceita como natural nos demais povos.
Da propriedade de terras na Idade Média ao direito de constituir um
Estado nacional em nossos tempos, a conversa é a mesma. Nunca muda.
BOICOTE
O quarto erro é apostar no isolamento,
no boicote político e econômico para colocar Israel de joelhos e
eventualmente riscá-lo do mapa. É uma estratégia baseada na hipótese de
construir uma correlação de forças planetária decisiva contra Israel.
Isso é, no mínimo, muito improvável.
Entre outras muitas razões, Israel está totalmente integrado à economia
global e desempenha papel estratégico em seu polo mais dinâmico, a
produção de alta tecnologia para fins agrícolas, industriais e
militares. Israel depende do resto do mundo, mas o resto do mundo também
depende de Israel.
Esse aspecto de seu desenvolvimento faz
Israel produzir e adquirir continuamente tecnologia militar que lhe
permite capacidade de dissuasão diante dos inimigos potenciais –o que
tem sido chave para a paz com os vizinhos. Se queres a paz, prepara-te
para a guerra, diz o ditado.
No plano religioso, a enorme
superioridade numérica do Islã sobre o judaísmo de alguma maneira vem
sendo contrabalançada pela crescente aproximação entre o
judaísmo-sionismo e diversos ramos do cristianismo. Este não é
indiferente à busca da hegemonia pelo Islã nem é cego à limpeza étnica
de seus fiéis no Oriente Médio e norte da África, limpeza acelerada pela
força crescente do islamismo político extremista após o ocaso da
Primavera Árabe.
Não há aqui qualquer juízo de valor sobre essas religiões, só constatação de fatos.
São muitas as premissas erradas. Ao
agarrar-se a elas, o movimento nacional palestino e seus amigos fogem do
único caminho viável: buscar uma solução baseada na aceitação mútua da
existência alheia. Essa é a premissa certa.
Mesmo o sempre batido tema dos israelenses que moram em territórios da possível futura Palestina perderia importância.
Se um Estado palestino estiver disposto
a conviver em paz com o Estado judeu, qual o problema de existir uma
minoria judaico- israelense na Palestina? Afinal, há uma importante
minoria de árabes em Israel, boa parte dos quais se considera palestina e
não pretende mudar de endereço se o Estado palestino for criado.
Quando França e Alemanha decidiram
viver em paz e encerrar guerras que pareciam eternas, ninguém se
preocupou em saber quantos alemães haveria na França ou quantos
franceses morariam na Alemanha. Se dois vizinhos optam pela paz
duradoura, isso deixa de ser assunto.
Na opção pela paz, Israel e Palestina
poderiam ser como França e Alemanha, o núcleo de uma integração política
e econômica regional, com a participação decisiva da Jordânia.
Não
seria ótimo?
Para tanto, porém, será preciso
resolver de vez o problema apontado no início deste texto. Os árabes e
os iranianos precisariam aceitar a realidade: o Estado judeu de Israel é
legítimo, forte, soberano e está ali para ficar. Quando –e se– isso for
aceito e esse nó desatado, o resto será consequência.
O movimento nacional palestino só tem
futuro se deixar de considerar os judeus "colonos", Tel Aviv um
"assentamento" e a presença judaica em qualquer parte do território uma
"ocupação".
ALON FEUERWERKER - é
jornalista e analista político, foi Secretário de Redação da Folha,
colunista político do "Correio Braziliense" e subchefe de Assuntos
Parlamentares da Presidência (governo Lula).
<Rua Judaica>
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