Cena um: durante uma cerimônia de luto, levanta-se um rabino ortodoxo
para proferir algumas palavras. Numa sala com mais de 80 pessoas, parte
dos quais amigos não-judeus da família, o Rabino conta a história
(curtamente resumida aqui) de uma criança judia que viveu somente até os
dois anos de idade e depois morreu repentinamente. Desconsolados, os
pais tentam descobrir o que houve e o rabino local explica que a alma
dessa criança era a mesma alma de um antigo sábio judeu que viveu muitos
anos atrás. Infelizmente, segundo o Rabino, a mãe desse tal sábio não
possuía leite então ele foi amamentado durante dois anos por uma ama de
leite não-judia, fazendo com que sua alma ficasse impura. Explicou o
Rabino que isso deixou uma mácula na alma do tal sábio, que só pode ser
consertada muitas décadas depois, através do nascimento do bebê, esse
sim alimentado com leite 100% judeu durante 2 anos e aí a alma estava
consertada e pronta para ir ao paraíso.
Moral da história: leite de goy não presta
Cena dois: um amigo meu, cristão, que trabalhava voluntariamente com
atendimento terapêutico a pessoas com problemas psicológicos foi buscar
um paciente. Era um rapaz muito religioso. Meu amigo entrou na sinagoga
para buscar o rapaz e logo vieram dois rabinos ortodoxos reclamar da
presença de um não-judeu por lá. Como não entende Iídiche, meu amigo
ouviu algo como “rkrkrkrkr GOY rkrkrkrkrkr GOY rkrkr GOYGOY”. Em
seguida, o rapaz, que aparentemente não era tão louco assim, gritou com
os mais velhos “Expulsem vocês! Querem expulsar? Expulsem vocês! Vocês
não dizem que isso aqui é a casa de Deus?? Que todos são bem vindos? Que
todos são iguais? Porque ele não pode ficar aqui?”
Moral da história: presença de goy em sinagoga não serve
Cena três: outro serviço religioso de luto, outro rabino ortodoxo
contando. Outra história, só que agora uma variação do tema anterior. O
mesmo bebê, também vive dois anos. Também morre inexplicavelmente.
Segundo o rabino, trata-se de uma alma que viveu há muitos anos, nasceu
na família do rei do País e foi educado por um padre muito sábio e muito
inteligente. O padre era incrivelmente sábio e respeitado, mas ele
tinha uma particularidade. Ele se afastava de todos e ficava recluso
duas horas por dia dentro de um quartinho sem ninguém poder vê-lo. Um
dia, o garoto se escondeu no quarto do padre e ficou observando. O padre
tirou talit, tefilin e começou a rezar em hebraico. Surpresa! O padre
era judeu. O garoto estudou judaísmo (era uma alma judaica perdida,
afinal), abandonou o reino, se tornou sábio, mas deixou aquela
imperfeição que foram os dois anos na casa do rei não-judeu. Novamente,
contou-se que os dois anos de vida daquele bebê que tinha falecido
serviu para consertar aquela alma e torná-la realmente pura o suficiente
para o paraíso.
Moral da história: todos os padres são burros, exceto os que forem judeus
As três histórias relatadas aqui, duas delas presenciadas por esse
autor e a terceira escutada de fonte confiável, têm em comum o profundo
preconceito na forma como parte da comunidade vê a sociedade que está lá
fora. Para alguém que tem trabalhado há mais de dez anos para melhorar a
imagem do judaísmo, não posso nem começar a descrever o estrago que
tais manifestações causam na mente de quem escuta essas coisas. Os
inimigos estão aí fora bastante atentos a todo tipo de preconceito vindo
da comunidade e usando isso diligentemente. Um exemplo disso foi
durante um debate recente na Rede Record. Eu estava representando o lado
de Israel e uma senhora árabe representava o lado palestino no conflito
árabe-israelense. Durante o debate, ela tirou um folheto de uma
sinagoga ortodoxa de São Paulo falando barbaridades racistas. Estrago
irreparável.
Tenho plena consciência de que existem duas correntes distintas em
relação ao judaísmo e que é preciso respeitar as diferenças entre elas
para termos uma convivência harmônica e adequada à unidade do povo
judeu. O bloco liberal tem como linha mestra adaptar a lei judaica à
vida moderna, reinterpretando e concentrando a atenção sobre o espírito
da lei ao invés da letra da lei. A linha ortodoxa prefere uma abordagem
mais tradicional e literalista em relação aos textos judaicos,
especialmente os escritos após a idade média, como o Shulchan Aruch. Se
uma parte da comunidade prefere optar por trajes tradicionais pretos,
observar os detalhes das regras de shabat, festas e kashrut, só me resta
aplaudir essa manifestação de vigor judaico e diversidade. No entanto,
quando isso envolve ofender sistematicamente (apesar de
inconscientemente) os não-judeus, não podemos aceitar, pois é errado e
contraproducente.
É verdade que todas as sociedades antigas tinham um forte elemento
particularista. Em praticamente todas as cidades gregas, os estrangeiros
(não-gregos) eram tratados como sub-humanos. O nome Xenos (estrangeiro)
é a equivalência grega do nosso “goy”. Fenícios, babilônios e muitos
outros tinham leis e uma cultura que discriminava aqueles que estão de
fora. A organização primitiva de todos os povos era focada na
preservação do núcleo do grupo. No entanto, no contexto do século XXI,
essa visão é absolutamente anacrônica e inaceitável sob a ótica das
sociedades livres. Em um País igualitário e acolhedor como o Brasil,
tais manifestações soam ainda mais graves.
Fazer essas afirmações não significam de modo algum ser
anti-ortodoxo. Longe disso. Tenho acompanhado o trabalho das sinagogas
ortodoxas na comunidade e reconheço o enorme valor que eles tem
oferecido no sentido de envolver mais judeus nos serviços religiosos,
atraindo jovens, fazendo eventos, divulgando as festas judaicas para a
comunidade. O fato de haver sinagogas ortodoxas nos mais variados
bairros da cidade fez a ida à sinagoga uma possibilidade real para
milhares de pessoas, um valor incalculável no contexto do caos urbano
que é São Paulo. Também não estou afirmando que absolutamente todas as
manifestações de preconceito vêm do lado ortodoxo da comunidade. Rabinos
liberais não estão completamente imunes a isso. No entanto, analisando
em termos gerais, é bastante claro que as manifestações de intolerância
vêm esmagadoramente do lado ortodoxo da comunidade. Vemos também que uma
parte significativa deles continue proferindo pérolas de preconceito
como as três citadas no início do texto e produzindo inimigos a toque de
caixa. Sendo bem franco, se eu fosse cristão e viesse um judeu sugerir
que o leite de uma mãe cristã torna a alma impura eu certamente não
ficaria nada feliz. Como você leitor se sentiria?
Não acho que os casos que citei sejam feitos deliberadamente ou com o
intuito de ofender ninguém. A sensação que fica é que existe um caldo
de cultura onde os jovens estudantes de Yeshivá são imersos e acabam
considerando como certa a idéia de que judeus são melhores que os
outros. É preciso mudar isso e tal iniciativa só pode partir de dentro
do próprio movimento. Rabino é rabino, seja liberal ou ortodoxo. O que
um rabino diz é escutado e levado em conta mesmo fora da comunidade,
pois essa profissão implica ser um porta voz do judaísmo. Quando um
líder religioso islâmico faz afirmações horrendas sobre Israel, isso
reflete sobre todos na percepção do Islã. O mesmo ocorre conosco. Quando
um rabino ortodoxo fala, está se manifestando em nome do judaísmo,
então não se pode levar levianamente os discursos.
Se queremos realmente ser aceitos, é preciso também aceitar o outro, com respeito genuíno.
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