Translate 4 Your Language

14.1.12

Lições da ortodoxia para fabricar um Anti-Semita

Cena um: durante uma cerimônia de luto, levanta-se um rabino ortodoxo para proferir algumas palavras. Numa sala com mais de 80 pessoas, parte dos quais amigos não-judeus da família, o Rabino conta a história (curtamente resumida aqui) de uma criança judia que viveu somente até os dois anos de idade e depois morreu repentinamente. Desconsolados, os pais tentam descobrir o que houve e o rabino local explica que a alma dessa criança era a mesma alma de um antigo sábio judeu que viveu muitos anos atrás. Infelizmente, segundo o Rabino, a mãe desse tal sábio não possuía leite então ele foi amamentado durante dois anos por uma ama de leite não-judia, fazendo com que sua alma ficasse impura. Explicou o Rabino que isso deixou uma mácula na alma do tal sábio, que só pode ser consertada muitas décadas depois, através do nascimento do bebê, esse sim alimentado com leite 100% judeu durante 2 anos e aí a alma estava consertada e pronta para ir ao paraíso.

Moral da história: leite de goy não presta

Cena dois: um amigo meu, cristão, que trabalhava voluntariamente com atendimento terapêutico a pessoas com problemas psicológicos foi buscar um paciente. Era um rapaz muito religioso. Meu amigo entrou na sinagoga para buscar o rapaz e logo vieram dois rabinos ortodoxos reclamar da presença de um não-judeu por lá. Como não entende Iídiche, meu amigo ouviu algo como “rkrkrkrkr GOY rkrkrkrkrkr GOY rkrkr GOYGOY”. Em seguida, o rapaz, que aparentemente não era tão louco assim, gritou com os mais velhos “Expulsem vocês! Querem expulsar? Expulsem vocês! Vocês não dizem que isso aqui é a casa de Deus?? Que todos são bem vindos? Que todos são iguais? Porque ele não pode ficar aqui?”

Moral da história: presença de goy em sinagoga não serve

Cena três: outro serviço religioso de luto, outro rabino ortodoxo contando. Outra história, só que agora uma variação do tema anterior. O mesmo bebê, também vive dois anos. Também morre inexplicavelmente. Segundo o rabino, trata-se de uma alma que viveu há muitos anos, nasceu na família do rei do País e foi educado por um padre muito sábio e muito inteligente. O padre era incrivelmente sábio e respeitado, mas ele tinha uma particularidade. Ele se afastava de todos e ficava recluso duas horas por dia dentro de um quartinho sem ninguém poder vê-lo. Um dia, o garoto se escondeu no quarto do padre e ficou observando. O padre tirou talit, tefilin e começou a rezar em hebraico. Surpresa! O padre era judeu. O garoto estudou judaísmo (era uma alma judaica perdida, afinal), abandonou o reino, se tornou sábio, mas deixou aquela imperfeição que foram os dois anos na casa do rei não-judeu. Novamente, contou-se que os dois anos de vida daquele bebê que tinha falecido serviu para consertar aquela alma e torná-la realmente pura o suficiente para o paraíso.

Moral da história: todos os padres são burros, exceto os que forem judeus

As três histórias relatadas aqui, duas delas presenciadas por esse autor e a terceira escutada de fonte confiável, têm em comum o profundo preconceito na forma como parte da comunidade vê a sociedade que está lá fora. Para alguém que tem trabalhado há mais de dez anos para melhorar a imagem do judaísmo, não posso nem começar a descrever o estrago que tais manifestações causam na mente de quem escuta essas coisas. Os inimigos estão aí fora bastante atentos a todo tipo de preconceito vindo da comunidade e usando isso diligentemente. Um exemplo disso foi durante um debate recente na Rede Record. Eu estava representando o lado de Israel e uma senhora árabe representava o lado palestino no conflito árabe-israelense. Durante o debate, ela tirou um folheto de uma sinagoga ortodoxa de São Paulo falando barbaridades racistas. Estrago irreparável.

Tenho plena consciência de que existem duas correntes distintas em relação ao judaísmo e que é preciso respeitar as diferenças entre elas para termos uma convivência harmônica e adequada à unidade do povo judeu. O bloco liberal tem como linha mestra adaptar a lei judaica à vida moderna, reinterpretando e concentrando a atenção sobre o espírito da lei ao invés da letra da lei. A linha ortodoxa prefere uma abordagem mais tradicional e literalista em relação aos textos judaicos, especialmente os escritos após a idade média, como o Shulchan Aruch. Se uma parte da comunidade prefere optar por trajes tradicionais pretos, observar os detalhes das regras de shabat, festas e kashrut, só me resta aplaudir essa manifestação de vigor judaico e diversidade. No entanto, quando isso envolve ofender sistematicamente (apesar de inconscientemente) os não-judeus, não podemos aceitar, pois é errado e contraproducente.

É verdade que todas as sociedades antigas tinham um forte elemento particularista. Em praticamente todas as cidades gregas, os estrangeiros (não-gregos) eram tratados como sub-humanos. O nome Xenos (estrangeiro) é a equivalência grega do nosso “goy”. Fenícios, babilônios e muitos outros tinham leis e uma cultura que discriminava aqueles que estão de fora. A organização primitiva de todos os povos era focada na preservação do núcleo do grupo. No entanto, no contexto do século XXI, essa visão é absolutamente anacrônica e inaceitável sob a ótica das sociedades livres. Em um País igualitário e acolhedor como o Brasil, tais manifestações soam ainda mais graves.

Fazer essas afirmações não significam de modo algum ser anti-ortodoxo. Longe disso. Tenho acompanhado o trabalho das sinagogas ortodoxas na comunidade e reconheço o enorme valor que eles tem oferecido no sentido de envolver mais judeus nos serviços religiosos, atraindo jovens, fazendo eventos, divulgando as festas judaicas para a comunidade. O fato de haver sinagogas ortodoxas nos mais variados bairros da cidade fez a ida à sinagoga uma possibilidade real para milhares de pessoas, um valor incalculável no contexto do caos urbano que é São Paulo. Também não estou afirmando que absolutamente todas as manifestações de preconceito vêm do lado ortodoxo da comunidade. Rabinos liberais não estão completamente imunes a isso. No entanto, analisando em termos gerais, é bastante claro que as manifestações de intolerância vêm esmagadoramente do lado ortodoxo da comunidade. Vemos também que uma parte significativa deles continue proferindo pérolas de preconceito como as três citadas no início do texto e produzindo inimigos a toque de caixa. Sendo bem franco, se eu fosse cristão e viesse um judeu sugerir que o leite de uma mãe cristã torna a alma impura eu certamente não ficaria nada feliz. Como você leitor se sentiria?

Não acho que os casos que citei sejam feitos deliberadamente ou com o intuito de ofender ninguém. A sensação que fica é que existe um caldo de cultura onde os jovens estudantes de Yeshivá são imersos e acabam considerando como certa a idéia de que judeus são melhores que os outros. É preciso mudar isso e tal iniciativa só pode partir de dentro do próprio movimento. Rabino é rabino, seja liberal ou ortodoxo. O que um rabino diz é escutado e levado em conta mesmo fora da comunidade, pois essa profissão implica ser um porta voz do judaísmo. Quando um líder religioso islâmico faz afirmações horrendas sobre Israel, isso reflete sobre todos na percepção do Islã. O mesmo ocorre conosco. Quando um rabino ortodoxo fala, está se manifestando em nome do judaísmo, então não se pode levar levianamente os discursos.

Se queremos realmente ser aceitos, é preciso também aceitar o outro, com respeito genuíno.

Nenhum comentário:

Postar um comentário