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29.8.10

Ki Tavô


Os talentos e capacidades do ser humano são inatos ou aprendidos? A discussão sobre se o indivíduo já vem com uma “configuração original de fábrica” pré-programada ou se nasce como uma tabula rasa, com tudo por aprender, faz parte de memoráveis debates na história da filosofia e da psicologia, da medicina e da educação. Os psicólogos comportamentais clássicos afirmavam que se os pais lhes confiassem uma criança bem pequena para educar, fariam dela o que os pais quisessem: um médico ou uma engenheira, por exemplo, pois para eles nada era herdado, tudo é aprendido. Por outro lado, há aqueles que defendem a importância dos talentos herdados, seja geneticamente, seja como herança espiritual, vinda dos pais, ou até de um povo inteiro.



A leitura da Torá desta semana incorpora justamente a tensão entre o herdado e o aprendido. Ela inicia com “quando você chegar à terra que o Eterno seu Deus lhe dá por herança, e você a herdar” (Deut. 26:1) e termina com “guardem os ditos desta aliança e os coloquem em prática, a fim de aprenderem em tudo o que fizerem” (Deut. 29:8). A palavra usada para “aprenderem”, taskilu, não é a mais comum de se encontrar na Torá. No dicionário, encontrei diversas definições para sua forma substantiva, hascalá: educação, escolaridade, conhecimento, sabedoria, erudição, iluminismo.



Hascalá. Este foi o nome do movimento surgido entre os séculos 18 e 19, conhecido como o Iluminismo Judaico. Nos tempos em que os judeus puderam deixar os guetos, épocas em que nossos antepassados lutaram por direitos iguais e de cidadania nos países em que viviam, os idealizadores de uma sociedade que integrasse os judeus entre seus cidadãos ficaram conhecidos como maskilim. O Iluminismo Judaico influenciou de forma decisiva em nossas vidas até hoje como judeus no mundo moderno, independente de nossas inclinações religiosas. Do debate sobre a vida judaica emancipada, podemos dizer que surgiram três tendências principais: (1) a dissolução na sociedade maior, com elevado índice de assimilação das novas culturas no país natal e abandono da herança judaica; (2) o movimento sionista, na busca da criação de um estado independente onde os judeus pudessem ser livres, em igualdade de condições com as demais nações;  e (3) um processo de integração à cultura maior, mas com a preservação dos valores judaicos herdados. Desta última surgiram diversos movimentos que buscaram e ainda buscam responder ao desafio de se viver como judeu no mundo moderno, seja no Estado de Israel, como parte das nações do mundo, seja como judeus que vivem como minorias em seus respectivos países. Estes diversos caminhos buscam, cada um ao seu modo, dar a melhor resposta para lidar com a tensão entre a nossa herança judaica herdada e o mundo que nos rodeia e do qual fazemos parte.



Entre o primeiro e o último versículo da leitura da Torá, entre o herdado e o aprendido, há inúmeras técnicas de como lidar com esta tensão: escrever o que se herdou, cumprir rituais, explicar bem, advertir sobre recompensas e punições, escutar, apreender, praticar. Esta tensão constante me faz ler o termo taskilu, no último versículo, principalmente como a prática de iluminar. O aprendizado, o estudo, o debate travado em cada geração e em cada local joga sempre uma nova luz sobre Israel, nossa terra, tradição e herança, fazendo com que a vejamos por novos ângulos e possamos enxergar algo que não havíamos visto antes. Neste sentido, a haskalá, a iluminação ou iluminismo, amplia os horizontes da herança judaica e a torna ainda mais rica e valiosa para as gerações seguintes.



Não é fácil lidar com tensões. Por outro lado, ao enfrentar os conflitos, nós nos sentimos vivos e nos desenvolvemos, como pessoas e como judeus. Nas palavras de Maimônides, a versão de uma das bênçãos anteriores ao Shemá, em sua obra Mishnê Torá: “Dê aos nossos corações a capacidade de entender,  iluminar: escutar, aprender e ensinar, apreender e colocar em prática, e cumprir todos os ditos do estudo da Tua Torá com amor.” (Sefer Ahavá, Seder Hatefilá 9)



Shabat Shalom!

Uri Lam




*A parashá da semana é acompanhada por uma ilustração da aquarelista Rosália Lerner.

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