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23.7.10

Vaetchanan

Shemá Israel: algumas notas sobre a frase mais famosa


 

Como todos os anos, após o jejum de Tishá b’Av, que lembra a destruição dos templos e todas as demais desgraças de nossa história, lemos a segunda parashá do último livro da Torá, que inclui os dez mandamentos e o Shemá.

Em seguida, comentarei alguns aspectos centrais do famoso trecho.


O contexto e o uso

No contexto do texto não fica claro quem é que esta falando e para quem. O Midrash estabelece que foram os filhos de Jacob que se dirigiram a ele com seu segundo nome, Israel, e demonstraram, assim, que tinham adquirido sua fé. Ou seja: ‘escuta pai, chamado Israel, sabemos e reconhecemos que o nosso Deus é um, o único’. Talvez era também uma forma de manifestar sua disposição a certa universalidade: um Deus para uma humanidade e, por tanto, podemos confiar nas demais nações.

Outra opção, mais próxima ao contexto, se complica em relação ao texto, uma vez que a ideia de que é Deus que fala para o povo que ele é único traz a dificuldade dele estar falando de si mesmo em terceira pessoa e dele se incluir na expressão ‘eloheinu’, ou seja, ‘nosso Deus’.

Por último, poderia ser Moshé que falou essa frase para o povo. Nesse caso, o único ponto que ficaria estranho é o fato de ele não se mencionar, uma vez que sempre que ele que fala, o texto faz questão de indicá-lo.

O uso do Shemá é conhecido. Ele é pronunciado duas vezes por dia nas rezas estabelecidas da manhã (Shacharit) e da noite (Arvit). Existe um acréscimo para recitá-lo ao nos deitarmos, antes de dormir; e é proclamada na hora de retirar os rolos da Torá da arca sagrada nas festas e na manhã de Shabat, e também durante a Grande Oração do Mussaf. Na história, sabemos que muitas pessoas, especialmente mártires, morreram proclamando o Shemá.

Ouvir

O Shemá começa com o estranho mandamento de ouvir. Como se não fosse óbvio, natural e até involuntário e incontrolável o ato de ouvir. Escutar é voluntário. Ouvir, diríamos que não. Quase pelo contrário: para poder prestar atenção a algo que queremos escutar, precisamos, ao mesmo tempo, apagar os demais sons que ouvimos involuntariamente e focar a audição no desejado. O texto, ao nos mandar ouvir, estaria sugerindo que também os atos involuntários e instintivos podem ser feitos de modo diferente. A vontade tem lugar também no corpo, nos orgãos, nos sentidos. Temos liberdade e, portanto, responsabilidade por como os aplicamos: como ouvimos, quando ouvimos, quanto ouvimos.

A unicidade

A maioria das interpretações que foram dadas a este trecho fala do conceito de unicidade de Deus. Dele, alguns entenderam uma manifestação universal. Deus é o mesmo para toda a humanidade. Todos somos irmãos por uma única fé, por um único esquema de valores espirituais, no final das contas e no fundo das coisas. Outros, ao contrário, enfatizam a ideia de que é o nosso Deus, a nossa fé, o nosso caminho espiritual que chegará a conquistar todos os corações.

Na filosofia da linguagem medieval, o termo ‘echad’ (um) enfatizava três aspectos da divindade: a) o numérico b) o único, c) o homogeneo. Ou seja, Deus é um e não dois, é um pois nada se parece com ele e é um pois nao se compõe de princípios diferentes.

O amor como mandamento

O primeiro parágrafo do Shemá começa com o mandamento de amar Deus. Mandamento? Pode-se mandar amar? Pode-se escolher amar? O texto acredita que sim. Os sentimentos se relacionam com as vontades. Podemos querer amar alguem ou não, de um jeito ou outro. Temos certa liberdade para nutrir de uma forma ou outra um sentimento ou outro por uma ou outra pessoa, e daí nossa responsabilidade.

Partes do ser. Tipos de amor

O parágrafo continua com a ordem de amar com todo o coração, com toda a alma e com todas as capacidades, todos os bens dos quais dispomos. Existem lugares diferentes onde acontecem os sentimentos de amor: um é representado pelo coração, outro pela alma. Mas, além deles, existem outras ferramentas.  A expressão ‘todo o coração’ estaria indicando que existem partes diferentes no coração que nem sempre se envolvem totalmente nos nossos sentimentos. A mesma coisa acontece com a alma. Existem situações nas quais amamos menos do que podemos. Nossa capacidade de amar é complexa, contém diferentes aspectos emocionais, afetivos e espirituais. Podemos experimentar amores maiores e menores, mais e menos complexos. Mais profundos e menos. Que nos envolvem e que mais ou menos nos involucram. Todas as nossas ferramentas de amor estão, de algum modo, em nossas mãos. Podemos envolvê-las mais ou menos.  Temos certa liberdade e responsabilidade sobre elas.

Viagens de situações

O parágrafo do Shemá é finalizado com o pedido de segurarmos nossa entrega de amor, não apenas no que diz respeito ao sentir, mas também na ação (representada pelo braço) e no intelecto (representado pela cabeça). O trecho faz questão de que isso aconteça em todas as situações de vida: quando estamos em nossa casa ou no meio que nos é conhecido e controlado; quando estamos viajando, trilhando caminhos de busca de incerteza, sendo minoria; talvez na fraqueza que nos leve a deitar, que nos exija descansar; e quando temos toda a força para nos levantar e erguer com orgulho. Apenas com essa constância teríamos a capacidade de transmitir esses nossos valores às gerações futuras e, por isso, o texto diz que devemos falar tais palavras para os nossos filhos em todas essas situações. É preciso procurar meios para conseguir falá-las com a eficácia necessária e possível em cada situação.




Shabat shalom,
Rabino Ruben Sternschein


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