Os 70 anos do livro ‘Brasil, país do futuro’, os 130 anos do nascimento do autor e o aniversário de sua morte ganham uma série de homenagens, incluindo a transformação da casa onde ele viveu em museu.
Por Arnaldo Bloch –Artigo publicado em O Globo
O país do futuro: a expressão que virou sobrenome do Brasil (e da qual o ex-presidente Lula fez uso) foi carimbada no imaginário nacional a partir da obra do escritor, poeta, ensaísta e dramaturgo vienense Stefan Zweig, aqui refugiado em 1941. Em agosto de 2011, serão 70 anos da publicação deste livro utopista. Afastado pelo editor brasileiro Abraão Koogan, seu cicerone, dos círculos liberais e de esquerda, amigo de Freud, Rilke e Joyce, humanista formado por Rolland Romain, Zweig sequer tomou conhecimento de que aquele regime encarcerava Jorge Amado. Dois meses depois do aniversário do livro, serão 130 anos do nascimento do escritor. E, encerrando este ciclo com a efeméride mais sombria, em fevereiro de 2012 o país lembrará sua morte e a de sua esposa Lotte, por ingestão voluntária de veneno.
STEFAN ZWEIG no convés do navio Alcântara, prestes a desembarcar pela primeira vez no Rio, em 1936
Muitos críticos foram implacáveis com o livro, a ponto de acusar Zweig de ter sido comprado pelo DIP, o poderoso órgão de propaganda de Vargas, em troca do passaporte que lhe salvava a vida. Ele não respondeu, mas afastou-se, indo morar em Petrópolis, numa espécie de exílio dentro do exílio. Num verão extremamente chuvoso e úmido, com Lotte tomada por acessos de asma, o isolamento e a depressão fizeram-no enxergar no cenário de guerra a impossibilidade da paz vindoura. Terminou a sua autobiografia, “O mundo que eu vi”, concebeu e escreveu a célebre novela “Uma partida de xadrez” e, dias depois do afundamento do primeiro barco brasileiro por submarinos nazistas, deu fim a tudo na madrugada de 23 de fevereiro de 1942.
A CARTA DE DESPEDIDA que Zweig escreveu antes de se suicidar e foto da mesa de cabeceira como ela foi encontrada, ambas em exposição em Petrópolis: há duas versões do adeus, uma delas com as anotações do copidesque que o autor fez, preocupado com a concisão.
— Nos últimos anos acreditamos que o país deixava de ser uma promessa. De repente, naquela mesma Petrópolis, nos defrontamos com as venerandas mazelas públicas. A única coisa que confirma o livro e avisa que podemos estar diante de novos tempos é a cadeia de solidariedade. Ao contrário de outros viajantes, Zweig não se fascinava com as riquezas do país, preferia discorrer sobre a humanidade dos brasileiros — reflete o jornalista Alberto Dines, autor da biografia “Morte no paraíso” (Rocco).
A pedra fundamental das celebrações desse biênio Zweig seria lançada na semana passada, com um evento de abertura da exposição multimídia “Zweig vive”, no Centro Cultural Raul de Leoni, em Petrópolis, enfim cancelado devido às enchentes. O painel, contudo, está lá, aberto à visitação. É uma parte do acervo que será reunido na casa onde o escritor viveu. O projeto é tornar realidade a Casa Zweig, que também é o nome da entidade que centraliza a iniciativa, presidida por Dines. Caindo aos pedaços, descaracterizada, a habitação, tombada, passará por ampla reforma. O novo projeto, do escritório do arquiteto Miguel Pinto Guimarães, prevê uma escadaria pontuada por vários espaços multiuso. Os interiores — desfigurados pela criação de mais um piso, puxadinhos, garagem e o envidraçamento das varandas que Zweig, com certo ímpeto ficcional, descrevia como “gigantescas” — serão totalmente reconstruídos.
A CASA ONDE Zweig viveu com Lotte em Petrópolis e o projeto de sua renovação: obras devem começar em breve.
Duas camas patente ocuparão o quarto. As máscaras mortuárias serão recuperadas, e as duas versões de sua carta de suicídio, em alemão (e respectiva tradução), poderão ser lidas: artífice do idioma, Zweig fez copidesque de seu adeus, preocupado em que coubesse numa só pagina. A última agenda de telefones será exibida. Toda a sua obra, traduzida e editada no Brasil por Abraão Koogan, estará nas prateleiras, junto com as edições internacionais de “Brasil, país do futuro”, além de fotos, textos, recortes de jornal, caricaturas e uma conferência inédita no Rio. Um acervo com as biografias de outros ilustres imigrantes aqui refugiados (Otto Maria Carpeaux, Paulo Rónai, Bernanos e Ziembinski figuram numa lista que já atinge 200 nomes) está sendo formatado, sob a batuta do historiador carioca Fábio Koifman, especialista no assunto e autor de “Quixote nas trevas”. Estudantes austríacos vêm participando da pesquisa, sob as custas do governo de Viena. O estado alemão se comprometeu a investir recursos na restauração, através de um programa para a reconstrução de imóveis históricos relacionados com a cultura germânica.
O grosso do dinheiro, porém, vem de filantropos brasileiros e estrangeiros e da Lei Rouanet. O acervo, contudo, poderia ser bem maior. Em 1943, o diplomata Paschoal Carlos Magno, à época servindo em Londres, conheceu os cunhados de Zweig, que manifestaram a vontade de doar todo o acervo pessoal ao Brasil. A lista incluía cartas, volumes encadernados, a correspondência, objetos. Pascoal fez a ponte com o Ministério das Relações Exteriores, mas o país estava em guerra e não se deu a devida importância. Hoje, a maior parte está nas mãos da sobrinha Eva, que fez uma seleção das cartas para o livro “Stefan and Lotte Zweig’s South American Letters” (1940-1942), lançado no exterior e já nas mãos de editores brasileiros. A publicação traz a correspondência de Zweig com familiares na Inglaterra e defende a tese de que a importância de sua segunda mulher, Lotte, na trajetória do escritor foi subestimada pelos biógrafos. De carona no biênio, ainda vem o filme teuto-brasileiro “Leporella”, baseado no conto homônimo publicado pelo escritor, da dupla Moacyr Góes/Diler Trindade. No elenco, Sandra Corveloni, premiada em Cannes por “Linha de passe”, e o alemão Peter Ketnath, de “Cinema, aspirinas e urubus”. Espera-se que mais surpresas projetem a memória de um dos autores mais traduzidos da História, best-seller até hoje nas praças europeias e americanas, e outrora muito lido pela classe média brasileira.
(Fonte: Notícias da Rua Judaica)
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