Disse-me certa vez o Reb Azimov que... o que é que ele disse mesmo? Na verdade, não disse nada. Ele dormiu, em plena ceia de shabat. Era a primeira vez que o chefe dos Lubavitche de Paris me chamava para passar o Shabat na casa dele. Longa caminhada, da 17 Rue des Rosiers (a minúscula sinagoga mais antiga de Paris) até a região da Republique. Umas 30 quadras. E o rebe dormiu. Minha conversa podia estar chata, mas nem tanto. Era a exaustão do homem santo. Ao menos espero que fosse.
Azimov era (ou ainda é) de poucas palavras, ponderadíssimo. Certa vez numa daquelas discussões de sábado na sinagoga em que todo mundo come uns biscoitos e bebe vodca, uns lubs passavam a garrafa de uma polonesa de 99% por baixo da mesa, burlando a inofensiva Wiborowa que era oferecida à congregação. Uns enlouqueciam, outros em êxtase estavam já resvalando no candomblé. Na saída, Azimov me disse: eu bebo só um copinho e sossego. Assim posso ver essa gente toda tirar as máscaras e se revelar.
Pois um dia noutro shabat fomos visitar a mãe de Azimov. Na saída, umas ruelas sinuosas, passamos por um desses pátios internos parisienses, e de uma janela vinha um ruído horrível, metálico, de um maçarico ou algo assim, estragando o silêncio e a concentração pós-ceia, o repouso da alma. Azimov deu só uma olhada de relance. Fiquei com uma sensação ruim, como se aquele ruído fosse algum engenho infernal.
Duas semanas depois, Azimov teve um derrame. Fiquei um bom tempo sem notícias e acabei voltando a viver no Brasil. Uma estranha sensação, quase de culpa, me assaltou.
Anos depois, numa das vezes em que voltei à capital francesa, encontrei o Osias e ele me disse que ia visitar o Azimov (nem sabia que o Osias o conhecia).
Só então soube que ele estava vivo. Pedi para ir junto à visita. Apesar de os movimentos e a expressões de Azimov estarem limitadas pelo derrame, ele teve o ânimo de me perguntar se eu continuava casado com minha esposa iídiche. Eu disse que me separara. E que estava com uma goy.
Azimov se balançou como uma torre. Ele ficara realmente abalado por um momento, pois se lembrava dos tempos em que eu andava "na linha". Mas não foi hostil. Se estivéssemos na casa dele, no shabat, era capaz até de dormir. Por isso eu gosto tanto de Azimov. Um rabino que sobrevive ao inferno (desculpe, sei que isso não existe no judaísmo, então, seria a casa de um Dibuk ou algo assim) e que, de volta à vida, guarda na memória quem eu fui. E aceita quem eu hoje sou. Shalom.
(Fonte: Notícias da Rua Judaica)
Nenhum comentário:
Postar um comentário