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6.3.11

Moacyr e a folha talhada

A primeira vez que ouvi o nome Scliar não ouvi: vi, assinado num óleo sobre tela, natureza-morta de uma folha de árvore retalhada com pedaços de jornal na casa de meus pais. Tão lindo aquilo. Hoje está na minha sala. Era Carlos Scliar, muito amigo de minha saudosa tia Rosaly, outrora esposa de Alberto Dines. Aliás, a Orla Scliar, em Cabo Frio (onde meus tios tinham casa) é em sua homenagem. Só vim a conhecer pessoalmente seu irmão, o escritor Moacyr Scliar, e seu trabalho, quando Carlos faleceu, dez anos atrás. Não por circunstâncias de luto, mas por circunstâncias de acaso: uma palestra da qual participava ele, Osias Wurman e eu, promovida por alguma entidade que congrega judeus da América Latina. Foi num hotel daqueles antigos, escondido numa rua do Flamengo. Foi um bonito encontro, onde se falou sobre identidade. Preparei um texto especial sobre as múltiplas identidades que um judeu pode assumir. Religiosa. (Multi)étnica. Nacional. Univers al. Cultural. Democrática. Teocrática. Iberica. Russa. Diaspórica. Brasileira. Terminado o evento, Scliar veio me dizer que gostara muito do texto. Que eu devia guardá-lo, difundi-lo. Que estava muito bom o poder de síntese. Fiquei corado. Eu terminara de ler aquela que talvez seja sua obra mais brilhante, curiosamente, uma não-ficção que não tratava de imigração judaica para o Sul, mas de assuntos de interesse da sociedade geral. Chama-se Saturno nos Trópicos, e traça uma historiografia da melancolia, partindo da antiguidade, passando por Portugal e trazendo, via banzo escravo, via saudade lusa, via aculturamento indígena, via angústia árabe e judaica, a nossa grande tristeza brasileira. Estava tão impactado por aquele texto de alta erudição, beleza e poesia que recebi o cumprimento de Scliar quase como uma porrada e sequer tive palavras para comentar a sua obra! Mas isso seria o de menos: nos anos que se seguiriam, nos encontraríamos várias vezes, sobretudo em feiras liter ária. Jantaríamos, beberíamos, trocaríamos ideias sobre o mundo e a vida, mais que sobre literatura. Quando lancei minha saga familiar em 2008, ele foi um grande incentivador e difusor, e um dos primeiros a ler a obra. Mais recentemente, participamos, juntos, da coletânea "Primos", organizada por Tatiana Salem Levy e Adriana Armony, que reúne contos de autores brasileiros de origem judaica e árabe. Lembro-me do seu entusiasmo com o projeto. Quando soube que estava hospitalizado, inconsciente, fiquei perplexo. Scliar era daquelas pessoas que a gente não crê que morram. Hoje olho para a natureza morta de seu irmão e parece que vejo a folha de árvore talhada de letras, viva, se mover. Como uma folha de livro.

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